sábado, 6 de junho de 2020

Diário do Coronga – Dia 79

A pandemia cresce no Brasil, como capim em gleba abandonada.

Fui outro dia no supermercado e fiquei observando aquela gente toda de máscara. Surreal.

Já usei máscara em outras épocas. No surto de gripe suína de 2009, passei três meses indo trabalhar ou a lugares públicos devidamente protegido. As pessoas me olhavam com estranhamento. Nos primeiros dias, eu sentia um pouco de vergonha, mas acabei me acostumando. Dezembro veio e passou e a epidemia não chegou em Natal. Abandonei as máscaras. Em abril de 2010 tive um virose gripal violenta. Não fiz o teste, mas tenho certeza que foi a H1N1, como a gripe do porco foi rebatizada, pois nunca tive uma gripe tão forte em minha vida.

Hoje, vendo todo mundo de máscara no supermercado, percebo como é irreal isso. Estamos vivendo uma história de ficção científica. E as pessoas já normalizaram isso.

Também já estamos normalizando as mortes.

Há apenas dois meses, estávamos chocados com as notícias que vinham da Europa. Itália e Espanha contavam 400 mortes por dia. O horror!

Aqui, parecia que estávamos protegidos. Mas lá de cima vinha a pressão contra o isolamento social. Prefeitos e governadores eram acusados de quebrar o país. Os lá de cima organizaram carreatas nas cidades, deram o mau exemplo. "Todo mundo vai morrer um dia".

As pessoas aqui embaixo foram se cansando de ficar trancados. Vendo seus líderes na rua, sem máscara, desprezando a mortalidade, foram afrouxando o isolamento e perdendo o medo.

Hoje o Brasil conta os mortos em mais de mil por dia. Um por minuto. E não estamos chocados.

Ainda não estamos vendo os cadáveres acumular nas calçadas. O pessoal da saúde se apavora com a perspectiva, vendo as poucas UTIs serem lotadas rapidamente.

Mas o cidadão comum, o Homer Simpson de William Bonner, desconhece esse risco. Compra fácil a necropolítica, parece preferir não acreditar e seguir a vida normal. É mais confortável.

Nós continuamos isolados.

Corremos os riscos que somos obrigados a correr. Hoje, por exemplo, temos um eletricista aqui em casa trocando a fiação, pois estamos sem energia desde ontem à noite.

Ele ora usa a máscara, ora não. Marília briga comigo porque chego muito perto do eletricista. "Tem que ficar mais distante", fala baixinho depois de me chamar. Explico que não estamos num hospital e que está muito ventilado lá no corredor. Ela se irrita.

Quarta-feira, fui eu que fiquei preocupado. Ela passou mais de meia hora dentro de uma farmácia, apenas com máscara de pano, andando pra lá e pra cá, lendo embalagens de produto, passando a mão no cabelo. Tentei alertá-la para o risco, mas ela se irritou comigo. Paciência. Cruzar os dedos e torcer para que nenhum covídico tenha infectado aquela farmácia.

Foto: aguardando a gripe suína na Faz Propaganda, em 2009.

domingo, 17 de maio de 2020

Diário do Coronga – Dia 59.

Estamos aqui, eu e Marília, tentando nos isolar do mundo por causa da pandemia.

Mas o mundo insiste em nos visitar, entrando pela tela da tevê, pelas redes sociais, pelas mensagens de Whatsapp.

E o mundo só tem trazido notícias ruins.

Nesses 59 dias desde que nos recolhemos voluntariamente, o número de casos confirmados da Covid-19 cresceu até se aproximar de 5 milhões de pessoas, com mais de 300 mil mortos. No Brasil, o destrambelhamento do Governo Federal está surtindo o efeito buscado: os casos espiralam morro acima e nem sequer sabemos quantos doentes temos nem quantos já morreram. Não se faz testes, não se respeita o distanciamento social, não se investe em infraestrutura para atender os casos graves. Cada suposto investimento parece que se transforma rapidamente em mais caso de corrupção: respiradores que não são entregues, quando o são, é uma fração mínima, ou inadequados para a função. Inaugura-se um hospital de campanha num dia e, no outro, levam-se seus equipamentos embora para se inaugurar o próximo. Tudo isso acontecendo e a gente nem tem tempo de absorver, pois tem sempre uma crise política explodindo nas altas esferas federais. Todo dia uma ameaça de golpe, uma manifestação fascista, uma aglomeração ilegal a que as forças de segurança assistem impassíveis. As mesmas forças que reprimiam com brutalidade desconhecida as manifestações de alunos e professores nos anos 2013 e 2014, permitem agora que atos potencialmente nocivos à saúde pública, pedindo o fim da democracia, até com exibições de milícias fascistas, aconteçam sem que uma bomba de gás seja lançada, uma lata de spray de pimenta seja aberta, uma bala de borracha seja disparada.

São essas as notícias que o mundo nos traz todos os dias, todas as vezes que rompe nosso isolamento por meio da tevê, do tablet, do smartphone.

São essas as notícias de que tento me isolar todos os dias para manter a sanidade, buscando refúgio na música, na leitura, no estudo, no trabalho.

Mas não está fácil.

Neste mundo pré-iluminismo em que nos encontramos nesse terceiro milênio, a razão foi jogada pra escanteio,com o agravante de que a religião, como seus valores morais, desceu junto pelo mesmo ralo. Nem Kant nem Jesus.

Nesta pandemia, a pior infecção é a que está matando o que era humano, nessa oclocracia global em que vivemos.


segunda-feira, 24 de outubro de 2016

My little runaway

"And I'm walkin' in the rain,
Tears are fallin' and I feel the pain,
Wishin' you were here by me,
To end this misery
And I wonder--
I wah-wah-wah-wah-wonder,
Why,
Why, why, why, why, why she ran away,
And I wonder,
Where she will stay-ay,
My little runaway,
A run, run, run, run, runaway."


terça-feira, 20 de setembro de 2016

Tech dreams

Eu só desejo uma coisa desse povo que cria nossas maravilhas high tech: um gravador de pensamentos.

Sim, dispenso o teletransporte que me permita passar o fim de semana em Tóquio e até a máquina que me leve de volta ao passado, para visitar a Barreiras da minha adolescência, mas o gravador de pensamentos, eu preciso.

O fato é que costumo escrever textos enormes na minha cabeça --bem estruturados, instigantes, bem informados--, nas horas mais impróprias. São contos ou memoirs, ensaios políticos, textos humorísticos ou seções inteiras da minha dissertação de mestrado. Coisas que eu penso na hora: É isso. Exatamente assim. Tá perfeito, mas que são "escritos" debaixo do chuveiro, sentado no vaso ou ao volante do carro. E então, quando enfim posso sentar diante do netbook, conexões devidamente feitas, Google Docs aberto, puf. Sumiu.

Não é que sumiu tudo, sumiu aquele texto perfeito. Eu consigo recordar as ideias, o encadeamento e tal, mas na hora de digitar, sai um emaranhado de sentenças feias, sem a beleza argumentativa do texto anterior, sem les mots justes.

É por isso que eu preciso que Steve Jobs, esteja onde estiver, inspire seus meninos a criarem o gravador de pensamentos. Nem precisa do recurso speech-to-text, eu me encarrego de degravar o texto, sem problemas.

Mas, por favor, em nome de tudo o que já escrevi e desceu pelo ralo ou com a descarga, de todo escrito que já saiu voando pelas janelas do meu carro, alguém me crie um gravador de pensamentos!

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Labutano

E a vida segue mais ou menos assim, sei lá, entende?

Tenho andado meio num clima torschlusspanik, com o prazo de defesa da dissertação já praticamente estourado, mas ainda acreditando. Tenho sacrificado muito da minha vida "social" pela academia, mas, infelizmente, não tenho convertido devidamente esse tempo subtraído em linhas filosóficas escritas. Procrastino muito, embora esteja cada vez mais apaixonado pelo tema da minha pesquisa --e acho que já aprendi mais nos últimos dezoito meses de mestrado do que em toda a graduação.

Tento me motivar, lembrando de quanto tempo livre terei, uma vez que tenha defendido a dissertação. Ficarei livre para atividades não obrigatórias, como escrever ficção e memórias, voltar a desenhar meus calungas, estudar Direito. E só pensar em fazer algo sem ser obrigado já deveria ser estímulo bastante, mas meu humor varia absurdamente de um dia para o outro. Coisas de quem convive com o mix indesejável de ansiedade e depressão.

Mas, tenho andado. Tenho avançado a dissertação e ainda postado umas coisinhas no Medium (mor parte, reciclagem de velhos textos inéditos ou postados em blogues). Espero terminar 70% da dissertação antes do fim do mês para qualificar em meados de outubro e poder defender em meados de dezembro. Este é o meu prazo. Final.

É isso.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Um desastre anunciado

Em junho de 1997, publiquei este pequeno artigo no Correio de Natal sobre o primeiro grande escândalo do PT, envolvendo licitações no interior se São Paulo. Nele, eu prevejo que as consequências da escolha do partido sobre o que fazer com a denúncia poderiam "ser desastrosas para o futuro do partido". Eu não poderia estar mais certo. O artigo foi republicado pela coluna Portfolio, do Jornal de Hoje, em julho de 2005, quando estourou o escândalo do mensalão.

PT, saudações?

E de repente mais um adolescente de 17 anos ganha as manchetes de todos os jornais do país. Desta vez não se trata de nenhuma queima de índio ou do atropelamento e fuga de um filho de ministro. Desta vez o adolescente infrator nem mesmo é uma pessoa física, trata-se de uma ficção jurídica. É um partido político, o Partido dos Trabalhadores.

Apanhado de calças curtas pelo oportuníssimo (para FHC e Serjão) estouro de um escândalo envolvendo algumas de suas prefeituras, o PT reagiu como qualquer adolescente assustado reagiria: de maneira confusa e contraditória, com declarações precipitadas e desmentidos tardios. Pela primeira vez o partido enfrenta uma verdadeira prova de fogo.

Mas o que há de tão grave em mais um escândalo público nesse país movido a propinas, gravações e subornos? Apenas duas letras: PT. O partido, talvez o primeiro no Brasil a merecer esse nome, sempre teve fundações sólidas na ética e no comportamento político coerente. Mesmo os seus mais ardorosos inimigos admitem isso. Portanto, ao PT, como à mulher de César, não basta apenas ser honesto.

De outras vezes o partido teve seu nome envolvido em maracutaias, mas que nunca atingiram a instituição em si. Agora, no entanto, a denúncia é intestina, vem de um quadro partidário respeitado e aponta para Lula, que, queiram ou não queiram, continua sendo a parte mais visível do PT. As conseqüências desse imbróglio podem ser desastrosas para o futuro do partido.

O PT já admitiu que só tem uma saída, que é a apuração transparente e rigorosa (epa!) das acusações. Apuração e punição dos culpados, se houver. Mesmo que isso signifique a imolação do próprio Lula, sua estrela mais brilhante. O que advirá das cinzas de tal fogo purificador só Deus sabe, mas sem ele o partido corre o risco de ver sua imagem jogada na vala comum do fisiologismo político. Seria um triste fim para um adolescente tão promissor.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Rejeição

Ofereci um dos meus primeiros contos postados no Medium para uma publicação literária na plataforma. Uma semana depois recebi um lacônico email de rejeição, O editor explicava que, apesar daquela ser a melhor peça de minha autoria que ele tinha lido, ela continha "muitos, muitos problemas" de parágrafos, pontuação e ritmo. Era uma ideia boa desperdiçada com uma má execução e não atendia os critérios mínimos da publicação.

Eu poderia ter defendido meu trabalho e justificado o que o editor chamou de "muitos problemas de parágrafos e pontuação", mas preferi aceitar a crítica.

Me senti como Moacir Scliar, quando o canadense Yann Martel (autor de Life of Pi) confessou que tinha aproveitado a ideia de Scliar em Max e os felinos, porque achou que era uma boa ideia desperdiçada com uma má execução. Afinal, o canadense devia estar certo, pois foi ele que foi premiado e ganhou milhões com a adaptação do romance para o cinema.

Resta-me o consolo de saber que Life of Pi foi rejeitado por cinco editoras de Londres antes de ser publicado no Canadá.

Diário do Coronga – Dia 79

A pandemia cresce no Brasil, como capim em gleba abandonada. Fui outro dia no supermercado e fiquei observando aquela gente toda de máscara....